9 de set. de 2006

Ensaio sobre o sofá


Poucas coisas nessa vida são tão gostosas como ficar deitadão no sofá. Sem pensar na vida, debaixo do edredon, apenas olhando para um ponto fixo no teto. No frio, então, nem se fala.

Nos meus tempos de brejeiro, as minhas férias de julho eram dedicadas em tempo integral ao sofá.

Era um friozinho gostoso na casa de vovó, enrolado em milhares de cobertores, achocolato quentinho feitinho especialmente pela nona... A minha diversão era acompanhar aqueles filmes que passam toda santa férias nas sessões da tarde: Lagoa Azul, Um Tira da Pesada ou qualquer película juvenil que tivesse no final o título "alguma coisa do barulho."

Minha avó se amarrava naqueles programas de culinária. Um, em especial, era o nosso favorito, mas cujo nome me escapa agora pela memória. Era um programa encenado dentro de um supermercado de mentirinha, onde tres casais simulavam fazer compras e, no final, quem obtesse a maior soma dos produtos, sagrava-se o grande vencedor.

O apresentador era um baixinho careca e de óculos. Alguns produtos eram premiados e os competidores tinham os seus braços amarrados. Era um sarro. Ela ria e ria, apesar de algumas vezes eu achar essas tardes de inverno um pouco sacal.

Quando o primeiro friozinho bate sobre minha face e deixa as minhas bochechas vermelhas, logo lembro de minha avó. Da sopa de feijão que ela fazia à noite para esquentar a barriga, como ela dizia, ou de quando eu ia dormir e perguntava: "Gu, você quer mais um cobertor?".

Por mais que eu dissesse que não, não tinha jeito. A velha levantava de madrugada e colocava aquela mantinha extra, cujo cheiro gostoso de amaciante até hoje me tira um sorriso gostoso.

Mas, ao recordar de vovó, não tenho como esquecer de vovô. Um barato o Seu Gilberto. Acordava cedinho para ir até a padaria, comprar todos os jornais da banca e tomar o seu pingado com pão na chapa. Mesmo com um frio dos bravos, com ele não tinha tempo ruim.

Quando eu acordava ele já estava sentado na poltrona da sala, devorando a sua leitura matinal, sempre me dizendo: "Bom dia, ô, alemão! Você viu que o fulano vai jogar não sei aonde?". Era sempre alguma notícia de futebol. Ele sabia tudo sobre o esporte bretão.

Daí, enquanto eu ainda coçava as minhas remelas, fazia-me sentar pertinho dele no sofá e me contava sempre a mesma história, dos tempos em que viajava com o time da Portuguesa de Desportos, a nossa Lusa. Falava dos jogos, dos bastidores das partidas, dos jogadores... Eu adorava, por mais que eu já soubesse cada pedacinho daquelas historietas de cor-e-salteado.

Penso agora se não seria melhor eu mudar o título dessa crônica para "Ensaio sobre meus avós". Mas acho que não, sofá fica mais engraçado, além de uma metáfora para os vários invernos de minha infância. Afinal, era nele que eu passava grande parte de minhas férias, seja jogando videogame, vendo televisão com minha avó ou ouvindo as histórias do Seu Gilberto.

Hoje vovô não está mais entre nós, mas vovó está firme e forte. Moro com ela desde que passei a estudar em São Paulo. Infelizmente, como a vida costuma nos levar, as minhas tardes de inverno hoje são preenchidas pela labuta diária do trabalho.

Mas mesmo estando tão mais próximo e longe dela, a velha ainda me mata às saudades quando prepara uma boa sopa de feijão nesse friozinho ou me acorda de madrugada - por mais que eu ainda finja dormir e não notar - para me colocar aquele cobertor extra sobre o meu corpo.